"Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer." [M.S.T.]

17.7.09

5.
A Eva encontrou o Afonso à porta de minha casa e a esta hora não teve ainda uma daquelas recaídas que têm tanto de imanente como de natural. Estranho. Estará ela a recuperar de nove anos de tristeza moribunda e desumana? Não me parece. Deve ser apenas o resultado de alguma dose terminável de auto-convencimento de que o Afonso é do mundo e não dela.
Pareceu-me desejosa e sorridente. Uma Eva comum na sua singularidade e exclusiva no tom de violeta da sua alma. Sonhará ela com a possibilidade – remota – do Afonso a amar como ela há tanto anseia? Disso é ela capaz. De alimentar esperanças falsas e impuras que a fazem acreditar e viciar a sua inteligência. Valiosa e conformista, a Eva ganha pontos no amadorismo dos seus sentimentos. Ela é uma óptima prima, não uma boa amante. Não sabe amar na sanidade que o amor radiante estipula.
Contaminou a própria vida com o cadáver dançante de um Afonso que a consome e a visita inesperadamente. O cheiro da campa lacrimeja tudo em seu redor. A Eva não será a mesma sem esse odor a mortandade romântica e amarrotada. Ela não matou o Afonso. Embalsamou-o de uma forma errada e pegajosa.
E agora dança. Com um morto pendurado no coração e os encontros fugazes com a vivacidade desse homem que o Gui e eu adoramos. Dança. Maravilha as circunstâncias e os espectadores descabelados e contemporâneos que a invejam e admiram.
Está morta para o Afonso e muito viva para os amigos. Ela vive. Foi aprendendo a viver. Como se fosse um bebé e tivesse de utilizar pela primeira vez as pernas como meio locomotor simples e saudável. Eu ensinei-lhe tudo o que sabia e ainda mais para a transformar numa mulher forte e segura. E ela continua a mergulhar na resignação e no ressentimento.
A orientação terapêutica baseada na amizade que tão carinhosamente lhe facultei revelou-se incapaz. Ineficaz. Confesso isto ouvindo os gritos de dor do meu desassossego. Os uivos estridentes da minha falha. Da falta equiparável que a Eva me vai fazer quando partir sozinha para o Brasil.

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