"Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer." [M.S.T.]

2.8.09

9.
O meu nome é Beatriz. A Eva e o Bernardo são os únicos que me tratam por Bia. Não é que eu não goste, só não aprecio muito diminutivos. Para nos sentirmos inferiores e diminuídos já bastam as rasteiras da sociedade precária e limitadora que se foi construindo – ou degradando – sem que quase nada pudesse ser feito. No entanto, não me posso queixar muito. Tenho uma "vida formidável" como a Eva adora dizer. Mas tudo depende do ponto de vista ou dos olhos com que vemos. Não sou rica como ela, mas tenho uma profissão que amo mais do que qualquer outra coisa. Desde pequena que quis ser Educadora de Infância e não há nada que me dê mais prazer que cuidar das minhas crianças. Namoro há onze anos com o Bernardo e nunca tivemos uma discussão. Nem grande, nem pequena. O Bernardo também ama o que faz. É aquele tipo de médico sensível e dedicado que adora salvar vidas e não pensa muito na sua. Esquece-se várias vezes do das nossas ‘datas importantes’, mas eu compreendo-o. Ele trabalha muito mas eu sei que me ama. É isso que importa. Mesmo quando diz que vem jantar a minha casa e eu preparo algo especial e depois fico à sua espera até às duas da manhã sem um telefonema nem uma satisfação, está tudo bem.
Amo o Bernardo de uma maneira especial. Sem necessidade de retribuição. Sem obtenção de reciprocidade. Amo-o com carinho, sem pedidos nem ordens.
Aprendi a ser feliz com a simplicidade dos sentimentos que se misturam com a pureza das nossas vidas em separado mas comuns. E tem dado resultado.
Nunca lhe cobrei os minutos, nem as horas, nem os dias de espera. E esperei sempre. Com um sorriso nos lábios e outro no coração.
Quando se ama alguém como eu amo o Bernardo, perdoa-se tudo. A ausência ou o esquecimento, a leveza ou desencantação, a perda ou a saudade sem nome. A Eva não ama assim. O amor dela é insano. Ama mais com a cabeça do que com o coração. Ama este e aquele, ama o mundo e o Afonso. Ela é muito complicada, mas eu invejo a emoção e a dinâmica da vida que leva. Apaixona-se e desapaixona-se instantaneamente. Sai das relações magoada, mas depressa se cura. Vive a vida até ao limite e nunca atinge os limites da vida. Quando vamos as duas na rua eu torno-me invisível. Ela suga a beleza das outras pessoas com o seu porte aristocrático de bailarina celeste, com os olhos cor de céu, de esperança, de terra, de mel. Com o sorriso triste e doce que esboça numa pintura que a amplifica e me devora. Mas eu gosto muito dela. No fundo eu gostava de ser a Eva. Até de ser infeliz como ela, depressiva e terna. Ou eterna.
A vida da Eva é um corre-corre atrás de tudo e mais alguma coisa. Uma série de brincadeiras sérias que a tornaram uma mulher de sucesso, de vitórias, de concretização. Ser Educadora de Infância é extraordinário, mas por vezes sinto que me falta o sal e a pimenta que a Eva coloca em tudo o que faz. Sinto falta da adrenalina, dos choros compulsivos que a vejo fatalmente beijar, do medo que sente quando pensa no amanhã sem ou com o Afonso. Faz-me falta a descrença no amor que sei que o Bernardo sente por mim. Sinto falta da tristeza de que nunca provei, das raízes que se emaranham no coração da Eva e a sufocam mortal e poderosamente. Faz-me falta tudo o que nunca tive. Faz-me falta a vida da Eva.
Seria, com certeza, um abanão desconcertante, um experimentar de sensações que devem ser fascinantes. Um prazer mórbido e indomesticável. Algo sublime e indescritível.
Eu sei gerir bem o meu tempo, a Eva desperdiça o dela em momentos de doçura e em pedidos de compaixão, mas consegue fazer sempre tudo o que tinha planeado. Como se para ela o tempo duplicasse, apaixonado por podê-la vislumbrar mais horas.
O mundo gira à volta dela, as pessoas vivem em sua função. Teve sempre tudo e nunca deu valor a nada. Só ao Afonso.
Somos amigas desde pequenas e sempre vi a Eva chorar por tudo e por coisa nenhuma. Nunca tive pena dela. Às vezes tenho é pena de mim e de me ter deixado contagiar por ela. Não há nada a fazer. Quando a Eva entra na vida de alguém, sai quando lhe apetece e deixa o anfitrião eternamente à sua espera. Não há mesmo nada a fazer. Nada. Um dia ouvi o Francisco, amigo da Eva, dizer que ela é viciante. E eu concordo plenamente. O Francisco é um filósofo cheio de teorias pragmáticas e sensacionais que tal como eu foi corroído pela amizade inocente e malévola dela.
Eu sou feliz. Juro que sou. Mas a Eva é mais feliz na sua infelicidade que eu. Tem um amor não correspondido, trabalho incessante e desgastante, e é assolada por crises existenciais a todo o momento. É, talvez seja melhor eu continuar a amar a minha vidinha ensebada, sonsa e insossa que me entedia e omite, que vivenciar os sentimentos rubros e arábicos da Eva. Por melhor e mais flamejantes que eles sejam.
 
 
 

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